por Paulo Azevedo, do podcast @almasculina
direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

Dizem que o cão é o melhor amigo do homem. Talvez para muitos seja o único e possível. E têm lá suas razões: os cães são companheiros fiéis, obedecem aos comandos do seu dono, escutam sem contestar, têm hábitos regrados etc. Ter um cão ao seu lado tem efeitos já comprovados pela neurociência. Em idosos, por exemplo, melhoram a saúde física e mental, causam aumento da ocitocina, conhecido como “hormônio do amor”, redução dos índices de depressão e ansiedade, entre outros benefícios.

Sei disso: há quase 1 ano, conto com a companhia do meu 1º cão. Tarsila é uma cadela de rua que foi encontrada via post de Instagram e adotada, dentre tantas opções, por conta do seu olhar intenso, acolhedor. Não seria um clichê dizer que só falta falar. Ela já me viu chorar, rir, me faz voltar à infância quando rolamos no chão, dançamos ou brincamos com suas adoradas garrafas pet. Esses seres não colocam em xeque os conflitos guardados que muitos de nós temos. Em especial, os homens, educados de acordo com um “padrão” (sim, entre muitas aspas!) de masculinidade, na qual deve ser o dono da razão, evitar expressar sentimentos mais profundos, como vulnerabilidade e autocompaixão ou, nomear as emoções para além da raiva.

Dessa maneira, os homens constroem sua identidade baseada em aspectos muito frágeis: o poder que o dinheiro e uma carreira bem-sucedida pode trazer; a força física e sexual, a tal virilidade, que, ao longo dos anos, cede ao natural envelhecer; o carro do ano feito com obsolescência programada e por aí vai. Afinal, seriam realmente os cães os melhores amigos do homem?

Sobre a impermanência

Num mundo de ilusões, onde somos o tempo todo tomado por fantasias e afazeres, no qual nos ocupamos para não lidar com a impermanência, a transitoriedade de tudo, os cães talvez sejam mesmo uma boa companhia. Às vezes, me pego imaginando sem a Tarsila. O coração aperta só de pensar. Lidar com a perda, o luto em relação a qualquer coisa é algo que, definitivamente, não nos educam no mundo ocidental. Nestes tempos de pandemia, todos perdemos algo. A vida nunca mais será a mesma. O que você já perdeu na vida?

Aí recorro ao meu atual livro de cabeceira “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”, de Sogyal Rinpoche: “A compreensão da impermanência é paradoxalmente a única coisa a qual podemos nos agarrar, talvez nosso único bem duradouro”. E nesta publicação que traz ensinamentos milenares (que parecem ter sido escritos ontem!), uma dica pra lidar com estes tempos: “Descobri que, como em todas as situações graves e sombrias da vida, duas coisas são de extrema utilidade: bom senso e senso de humor. O humor tem um modo maravilhoso de deixar leve a atmosfera, ajudando a colocar o processo de morrer na sua perspectiva verdadeira e universal, quebrando a seriedade e intensidade excessivas da situação. Use o humor, então, do modo mais hábil e delicado que puder”.

Poster da série “After Life” / créditos: Netflix / divulgacão.

E a vida continua…

E é assim que a série britânica de comédia dramática criada, produzida e protagonizada pelo britânico Ricky Gervais, “After Life”, já na 2ª temporada disponível na Netflix, trata as perdas. “É uma história de amor entre um homem e sua esposa morta, Lisa Jhonson (Kerry Godliman). Os flashbacks, quando ele assiste as gravações em vídeo de sua mulher, são quando mais feliz ele fica. E mais triste é”, comenta Gervais numa entrevista.

E a história é mais que isso. Acompanhamos o jornalista, na faixa dos 50 anos, de um jornal local, Tony Jhonson (Gervais), em sua travessia pelos 6 estágios do luto – a negação, a raiva, a barganha, a tristeza, a aceitação e o significado, como descreve especialista em luto, David Kessler, co-autor com Elisabeth Kübler-Ross do livro “On Grief and Grieving: Finding the Meaning of Grief through the Five Stages of Loss”. Nessa jornada, vemos um homem rodeado de personagens comuns (com interpretações precisas e uma trilha sonora incrível!), em situações sem grandes reviravoltas, que despertam identificação imediata ao nos emocionar e nos fazer rir do patético cotidiano. Como na vida real.

Lá estão seu cunhado Matt (Tom Basden), editor do jornaleco, um homem em crise no casamento que tenta lidar com a difícil missão da constante ameaça de suicídio de Tony; o fotógrafo da redação Lenny (Tony Way) e melhor amigo de Tony, acostumado à sua pacata vida, que, encontra em umas das reportagens a sua nova companheira. Aliás, prepare-se: a cada episódio, surge uma nova pauta bizarra. Todos daquela pequena cidade querem seus “quinze minutos de fama”: o menino que toca duas flautas com o nariz, o homem com problemas de visão que posta, há um ano, suas correspondências na lata de lixo… Enfim, nada neste roteiro é por acaso.

Trailer da série “After Life” / créditos: Netflix / divulgação.

Espectro das masculinidades

Cada novo personagem provoca em Tony uma reação que o auxilia na transformação. E, em todos, parece haver uma conformidade com a vida que têm, não há galãs e mocinhas, o desafio do presente parece ser aceito, ainda que inconscientemente. E os diversos espectros de masculinidades ali nos fazem pensar sobre aspectos do patriarcalismo escondidos em nós mesmos: desde o psiquiatra de Tony e Matt (Paul Kaye) que dá lições sobre como ser um “homem de verdade”, escancarando um discurso medieval, pautado pela objetificação da mulher, algo ainda muito enfatizado na nossa sociedade; ao sobrinho de Tony, George (Tommy Finnegan), que sofre com o bullying na escola e o sem-teto Pat (Joe Wilkinson) que perdeu dezenas de quilos depois se tornar carteiro.

E, em todos eles, vemos que as coisas podem até ser uma companhia, dar suporte, nos impulsionar a levantar da cama e querer alcançar determinados objetivos. Mas nada disso tem valor se o homem não encontra o melhor amigo em si mesmo. Só assim ele e todos os homens podem deixar de ser o principal agente de violência contra si mesmo, as mulheres, todas as outras minorias e o meio ambiente.

Ainda que o protagonista conte com a guarda da sua cadela salva-vidas, Brandy, Tony precisa encontrar sozinho o caminho de volta para si. Fazer as pazes consigo mesmo para estar com os outros. Enquanto isso, algo na tela nos lembra que nascemos sozinhos e morremos sozinhos. E quem dá o sentido pra cada dia de nossas vidas, somos nós mesmos. Cada um à sua maneira de lidar com o sofrimento e… Sobreviver.

PS: Ainda sobre lidar com a perda de um amor, recomendo duas leituras: um pequeno livro com uma grande declaração de amor, “Carta a D.”, de André Gorz, na qual relata uma história de amor que durou até o fim da vida do autor com sua esposa; e o diário poético “Todo Mar Vai Ser Você”, da artista visual e poetisa Glaura Santos (@glaurasantos), designer responsável pela identidade visual do Almasculina. Uma declaração de amor à vida a dois, que ultrapassa o tempo cartesiano, e… Não vou dizer mais sobre eles porque senão seria spoiler. Apenas os leia e assista a série.

Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina.