por Paulo Azevedo, do podcast @almasculina
direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

Fui vencido. Já aviso: não perca seu tempo. Aqui tem tantos conteúdos pra que possa investir seu tempo. “Seria muito inspirador falar de amor no dia dos namorados”, pensei.  Imaginei que poderia trazer algum alento em tempos áridos. Juro que tentei. 

Queria propor algo num mundo tomado de irrelevâncias. Até fiz uma enquete nas minhas redes: “Sobre o amor, direta ou indiretamente: pra você, qual é a obra mais marcante?”. Inúmeras, não? Recebi dezenas de indicações de livros, filmes, séries, músicas… Ampliou ainda mais meu estreito caminho pra ocupar este espaço com palavras. 

Aliás, sobre as palavras, já compreendemos que não abarcam tudo. É muita responsabilidade, coitadas. E ainda levam a culpa sobre tantos desentendimentos. No amor, nem se fala. Declarações, pedidos, acordos, votos, rompimento etc. Quantas palavras sérias associadas! A-M-O-R. Como quatro letras dariam conta de tantas vivências?  

Educação sentimental para garotos 

E se eu mudasse desse substantivo masculino para o verbo? A-M-A-R. Olha só o que a mudança de uma vogal é capaz fazer! Sinto uma certa leveza só de passar à ação. Há esperança. Verbo nos coloca em movimento! Sou tomado por lembranças desse etéreo sentimento. E na maioria, as protagonistas são mulheres: mãe, irmãs, madrinha, tias, primas, amigas, professoras, diretoras e atrizes. Esse verbo tem uma energia feminina. Não quer dizer que seja exclusiva delas. 

Mais uma prova de como nosso sistema patriarcal é limitante. Ou seja, oprime muitos e priva todos. Quer dizer, beneficia um reduzidíssimo número de privilegiados. O mundo seria outro se os garotos fossem estimulados à uma educação sentimental. 

Talvez, por isso, muitos homens demoram tanto pra aprender a ler a si próprios. Confundem dor de estômago com paixão. Isso significa que a formação infantil masculina também é pautada por proibições. E muitos pré-requisitos da virilidade a cumprir. Já escrevi aqui sobre essa “caixa dos homens”. Uma espécie de check list da masculinidade hegemônica.  

Quiz do ideal romântico

Não é à toa, muitos seguem “moleques” a vida toda. E vemos alguns em posições de poder. Mesmo do topo, têm visão limitada do mundo. Agem com irresponsabilidade e egoísmo. Como se fossem o dono do campo e da bola. Precisamos atualizar esses processos de seleção. Aproveitar a pandemia e trocar “ficha limpa” ou fartos currículos pela habilidade de amar. Imagine. Seria mais ou menos assim: a triagem inicial teria uma tela com uma série de imagens sobre a diversidade no mundo. 

Gente de todos os gêneros, etnias e classes seriam retratados em cenas cotidianas. Quanto mais cliques, melhor a classificação no quesito empatia. A propósito, qual será o verbo para empatia?    

Seriam inúmeras etapas. Afinal, para ocupar cargos de tamanha responsabilidade é preciso critério. Na fase seguinte, seria avaliado o grau de desvio de “verbas emocionais” dos candidatos. Seria uma espécie de quiz sobre os efeitos do ideal romântico. Aliás, esse produto inventado no século XIX continua reciclado e tem baixo risco no mercado até hoje. Seria “sim”, “talvez” ou “não”. 

Faz promessas de amor incondicional, acima de tudo e todos? Gera expectativas irreais, quase um mito salvador de todos os seus problemas? Reconhece o próprio passado, com seus feitos e desfeitos? Demonstra real interesse, sem jogos de vaidade e abuso de poder? É transparente e não emite informações falsas? Permite acesso a fontes próximas e confiáveis de recomendação?

Amor em obras

Nas etapas finais, leituras seriam recomendadas. Muitos estão entre autores que me ensinaram algo sobre amar. Só pra citar alguns brasileiros: Raduan Nassar (“Lavoura Arcaica”), Clarice Lispector (“Uma Aprendizagem ou O Livros dos Prazeres”) e Guimarães Rosa (“Grande Sertão: Veredas”). 

Na verdade, a arte em suas múltiplas formas é uma grande mestra. No entanto, duas indicações estrangeiras serão básicas: “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, do pensador francês Roland Barthes (top #1 na minha enquete!); e “Ensaios de Amor”, do filósofo suíço Alain de Botton. 

A obra prima de Barthes expõe as percepções a respeito do amor, do amante e do que esse diz. E registra: “Ninguém tem vontade de falar de amor, se não for para alguém”. Sendo assim, temos um ponto de partida: a vivência. E na reconhecível jornada do encontro entre duas pessoas, de Botton revela que “o amor é uma habilidade a ser aprendida, e não apenas uma emoção”. Ou seja, todos temos chances. No entanto, o verbo de ação é muito claro: compreender. O aspirante precisa perceber, conhecer, enfim, entender que o movimento parte dele, ainda que provocado pelo externo. 

Capa do livro “Fragmentos de um Discurso Amoroso” / créditos: Editora Unesp/divulgação.
Capa do livro “Ensaios de Amor” créditos: Editora Rocco/divulgação.

A dura lição 

A prova final exigiria coragem. Vale lembrar que a origem da palavra vem do Latim coraticum, derivado de cor, coração. Afinal, imagine que o ocupante de tal vaga vai interferir diretamente na sua vida. Para ocupá-la, o mínimo de autoconhecimento é condição. Olhar pra dentro de si pode ser violento, doloroso. É uma conquista. Uma dor alegre. Uma paz inquietante. Exige boa dose de autocompaixão e gentileza. 

No teste, os pretendentes seriam colocados em uma sala. Hologramas com as próprias imagens seriam projetadas. As reações seriam registradas. E eles próprios estariam na banca de análise. Se acolheriam? Se tocariam? Seria um encontro sutil ou intenso? Essa seja talvez a mais dura lição. Se dar conta de que “toda a infelicidade do homem vem de uma incapacidade de ficar em seu quarto sozinho”, como escreveu de Botton. 

E, por último, vale lembrar que a vaga não é permanente. Exige revisão constante. Renovação de contrato diário. Nesse percurso, me dou conta de algumas “qualidades” essenciais do amar. Inclusive do que vivencio hoje. Ser revolucionário, inconformado, estar sempre em movimento. Mas ainda assim reconheço que fui vencido. Eu avisei. Não seria capaz de dizer nada mais sobre o amor. É in-fin-dá-vel colocar em letras todas as possíveis abordagens, situações, adjetivos que cabem neste verbo/substantivo.

PS: Para solteirxs, confira nosso episódio #11 com a dupla do Canal Soltos S.A. Eles produzem um conteúdo de primeira pra quem busca estar consigo antes de qualquer empreitada amorosa. E se você gosta de teatro, aqui vai uma boa dica relacionada ao tema. O link com o espetáculo “A[R]MAR”, com direção e dramaturgia assinadas por mim, com Rita Pisano e Bruno Perillo no elenco, realizado por uma equipe de incríveis artistas, está disponível durante a quarentena. A peça é inspirada livremente no conto “Manuscrito Achado Num Bolso”, de Julio Cortázar, outro grande mestre do quebra-cabeças de amar.


Capa do episódio 11 do podcast Almasculina /
Foto: @vitorvieirafotografia / Arte: @glaurasantos.

Cartaz do espetáculo “A[R]MAR” /
Arte/foto: @vitorvieirafotografia.

Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina.

Comments (4)
  1. @⁨Paulo Azevedo⁩ querido, que texto bonito! Mil portas em cada parágrafo! Que possamos ter a coragem do mergulho sempre! E como dizemos: “quero estar nessa vida no time daqueles que arriscam e se expõe”. E acredito que escolher essa ‘condição’ também tem a ver com amor e com amar. Beijo com muitas saudades

  2. Texto intenso, reflexivo, inteligente. Amor é construção de si, em primeiro lugar, pois nunca estamos prontxs, terminadxs. Lembremos que só podemos dar o que temos. Para dar amor é preciso ter amor dentro de si, se amar, se conhecer e também se perdoar. Paulo, com sua sensibilidade, nos coloca diante de nós, diante dos amores idealizados. Amor é diferente de Paixão (pá -chão)! Rsrs Essa última é ilusão.

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