por Paulo Azevedo, do podcast @almasculina
direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

É consenso que estamos num momento inédito na história. A globalização foi obrigada a ceder espaço à humanização. Isso significa que todos estão voltados para a solução de um problema comum. Ainda que de nossas casas! Nesses meses de quarentena, já passei por tudo quanto é sensação. Alívio de ter um tempo pra mim (estava cansado de estar cansado!). Preocupação com a saúde da família e dos amigos. Medo sobre o futuro profissional. Incerteza sobre as finanças. Impotência diante de tamanha desigualdade no Brasil e no mundo.  

Se você coloca uma lupa dentro de você, percebe algo bem grande do lado de fora. Aliás, essa é a minha receita diária pra manter a sanidade mínima. O meu percurso emocional parte de dentro pra fora. Nomear as emoções. Saber de si para se relacionar com os outros. E assim, amplio o meu olhar. E, naturalmente, surge outra constatação. A “cura” só vem depois de mapeado o problema. Mas como encontrar uma saída coletiva? 

A gincana compartilhada

Quando tenho uma inquietação, busco compreender sua origem. Como ela nasceu e tomou tamanho espaço. E a cabeça não para. Portanto, parto pra ação. Foi assim que surgiu o almasculina. Não entendia por que me sentia tão limitado nas possibilidades de ser. Precisava fazer algo.

Aliás, já percebeu quantas diretrizes norteiam nossa vida? Crescer, estudar, graduar, ter um bom emprego, estável e de terno ou tailleur, de preferência. Em seguida, galgar etapas na carreira, ter sucesso, prestígio. Soma-se a isso, namorar, casar, ter filhos, casa própria. Acrescenta-se, também, um bom dinheiro pra manter tudo isso. A saúde, em boa forma. E por aí vai… Até a aposentadoria (privada!). E fim.

Apesar de sabermos que poucos ganham nesse ‘jogo da vida’, vamos em frente! Essa trilha é um funil. Não para, não! Seguimos nessa gincana sem captar o que está por trás. Uma grande estrutura pra gerar capital. De todos os tipos. Seguimos “a ‘gestão do desempenho’ individualizada, focada em estabelecer objetivos individuais mensuráveis”, como aponta a socióloga australiana Raewyn Connell no livro imprescindível “Gênero em Termos Reais”.

Capa do livro “Gênero em Termos Reais” / créditos: Editora nVersos/divulgação.

Os protagonistas

Aos poucos, assumimos papéis. Desde criança, somos guiados rumo ao poder. Vai! Não para! Mas quem são os protagonistas que conduzem essa história? “Uma minoria privilegiada com poder e riqueza impressionantes, enquanto números muito maiores enfrentam pobreza, deslocamento cultural, ruptura de relacionamentos familiares e uma renegociação forçada dos significados das masculinidades”, alerta Connell. Em resumo, os primeiros colocados são homens brancos, héteros e cisgêneros. Homens de terno. Já reparou? 

Nove de cada dez cargos de liderança da iniciativa pública ou privada são deles. Da mesma forma, recebem duas vezes mais que as mulheres. Além disso, se beneficiam do suporte emocional e do trabalho não remunerado delas. O restante do elenco, se vira como pode. Figurantes sujeitos à padrões construídos ao longo da história. Ainda por cima, com cortes salariais e no bem-estar, aqui e ali.

A criação do personagem

E foi olhando pra isso que comecei a sondar sobre as masculinidades. Pra mim, é o alvo de todos os dilemas. Qual é o alto preço que pagam pra bancar esses benefícios? A primeira pista veio do fundamental documentário “A Máscara Em Que Você Vive” (The Mask You Live In / 2015), dirigido pela americana Jennifer Siebel Newsom. Uma aula sobre como criar homens saudáveis, indicado em vários episódios do nosso podcast. Os depoimentos dos especialistas são tão essenciais. É inevitável se perguntar por que não assistimos a esse filme antes. Aos pais, em especial, fica a dica.  

Portanto, para se desfazer da fachada “forte, rico e sexualmente ativo” existem outros caminhos. Inclusive, são muitos. Homens não são isolados e querem evitar os efeitos tóxicos dos “comandos de gênero” sobre eles. Ainda que seja difícil abrir mão dos privilégios, notam a importância do conforto comum. Pelo menos, deveriam tomar consciência disso. Tudo que está ao seu redor foi feito por muitos. Pare um minuto e veja. Esta tela, por exemplo. A conexão da internet, a xícara de café, a roupa que veste.

Trailer do documentário “A Máscara em Que Você Vive” / créditos: Netflix/divulgação.

A mudez dos homens

Aqui no Brasil não é diferente. Por trás da manutenção inconcebível do racismo, misoginia e homofobia que acompanhamos nos noticiários, existe a mudez. A omissão também é uma atitude. É isso que retrata o documentário “O Silêncio dos Homens” (2019), com direção audiovisual de Luiza Castro e Ian Leite, uma iniciativa do Instituto PdH (site PapodeHomem) e a Monstro Filmes.

A partir do relato de 40 mil homens, assistimos um esboço da rigidez e dos conflitos de quem pode controlar o acesso da igualdade de gênero. Ao mesmo tempo, uma significativa mudança se faz aos poucos. Surgem inúmeras articulações de homens apontando um caminho mais saudável. No entanto, algo maior impede ações mais radicais. Ainda que, inconscientemente, sofram, são os homens os maiores agentes de muitos problemas enfrentados hoje. Talvez por trás dessa masculinidade hegemônica, exista um “combustível” que a mantenha ao longo dos séculos no poder. Certamente, o neoliberalismo é um deles. É um sistema que dá a falsa noção de liberdade para agir em muitas esferas. Com isso, afeta diretamente todas as nossas relações.

Connell explica que “o neoliberalismo pode funcionar como um tipo de política de masculinidade em grande medida por causa do papel poderoso do Estado na ordem de gênero”. E completa: “Muitas políticas convencionais (por exemplo, questões de segurança e de economia) lidam substancialmente com homens ou servem aos interesses dos homens, sem que esse fato seja reconhecido”.

Cena do documentário “O Silêncio dos Homens” / créditos: Instituto PdH – Monstro Filmes/divulgação.
Trailer do documentário “O Silêncio dos Homens” / créditos: Instituto PdH – Monstro Filmes/divulgação.

Uma escada, por favor

Com tudo isso em mente, penso numa saída. Aliás, numa ‘escada’, uma ‘corda’ rumo a outro lugar. E, novamente, volto a olhar pra dentro. E encontro uma rota de evasão nesse itinerário implacável. A microrrevolução. Ou seja, essa capacidade de realizar grandes mudanças a partir de pequenas ações. Tirar nossas esperanças do “herói”, de um “salvador da pátria”, do “mito”. Enfim, olhar ao redor e identificar parceiros.

As dicas anteriores trazem vários exemplos disso. Ou ainda, dê um “Google”. Vai descobrir muitas para fazer parte ou inspirar você a criar a sua microrrevolução. A minha foi idealizar o almasculina. Esse espaço na podosfera para refletir sobre as masculinidades e suas diversas maneiras de estar no mundo hoje, para encontros mais viáveis pra todo mundo. Qual seria a sua?

Quem sabe aí não está nosso combustível viável para uma saída coletiva. Certamente, apostar nos afetos. Lidar com as inseguranças e preocupações em conjunto. Compartilhar a insatisfação. Sair do individualismo para ação. Buscar conhecimentos que nos tirem da indiferença e ignorância. Ao invés da resignação, nos dar as mãos não para criar “um novo normal”. Olhar sobre nossas feridas mais profundas. Sem receios ou melancolia. Para construir uma nova página pautada pelas nossas igualdades nas diferenças.   

PS: Compartilhe comigo qual saída você tem buscado nestes tempos. Qual tem sido seu ‘combustível’ pra lidar com a violência cotidiana que nos assombra? Como tem mantido a lucidez sobre nosso obscuro futuro?

Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina .

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