por Paulo Azevedo, do podcast @almasculina
direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

“Dance, dance, senão estamos perdidos”. Foi isso que a a coreógrafa alemã Pina Bausch ouviu de uma garota de 12 anos na Grécia. E era a partir disso, com uma provocação, que Pina iniciava suas obras: “O que move você?”. Esse simples chamado parece soar profético nestes tempos de pandemia. Afinal, quem pode, está confinado em casa há meses. Ainda que parte da nossa população não usufrua desse direito de escolha, a maioria dos espaços públicos ainda está fechada. Restaurantes, bares, academias, parques, boates, teatros, cinema etc. Ou seja, o lazer se restringiu às nossas casas. Inevitavelmente, o sofá e a TV se tornaram as estrelas do lar.

Inclusive, cheguei a fazer exercícios em um dos muitos canais de ginástica. Mas foi só uma vez. Aquilo não é pra mim. Ao longo das semanas, o corpo começou a chiar… Era o primeiro sintoma. Ao mesmo tempo, a situação exigia autocuidado por inteiro. Ao invés de tratar como uma “cobrança” cotidiana nessa abrupta adaptação, busquei outra saída. Resgatar lugares esquecidos em mim.

Nesse caso, reduzir a “marcha” foi um deles. Olhar para casa, a de dentro e a de fora. Além disso, reencontrar coisas perdidas no urgente caminho da vida. Uma delas, estava marcada no meu corpo. “Quais são seus lugares de prazer?”, ele me sussurrou quando me olhei no espelho.

Tantas camadas

Quem me acompanha aqui sabe: é um espaço de perguntas. Assim como no podcast, o que mais gosto é compartilhar ideias, gerar reflexões. Enfim, uma boa conversa. Assim surgiu a primeira resposta. No entanto, meu corpo dizia: “Ótimo, mas isso é muito mental, ‘cabeção’ demais, não?”. Eu ri e topei continuar o desafio. Por acaso, outra resposta veio. Foi enquanto ouvia uma música e preparava meu café. Imediatamente, sem cronômetro para cumprir a gincana diária, meu corpo se viu mais leve. Então, com os olhos fechados, notei um braço se alongar, os joelhos se flexionarem. Pouco depois, o tronco e o quadril seguiam a batida. Finalmente, a carne se fez dança.

Inesperadamente, estava tudo ali. Guardado nas articulações, ossos e músculos. Uma generosidade assustadora, livre de julgamentos e críticas. Sobretudo, resultados. Era só eu e meu corpo, sem plateia. Em seguida, lembrei de mim aos cinco anos se movendo na praia. Férias, sol, mar e família. Ali, nenhuma palavra alcançava tamanho contento. Onde ele foi parar?

Ao longo do tempo, vamos criando tantas “camadas”. Tomamos pressupostos como verdades. Inconscientemente, o olhar de fora, o social, molda nossa forma de ser. Dá um gênero – masculino ou feminino – aos nossos passos. Porém, resseca nossas articulações. Naturalmente, por necessidade de nos adaptarmos ao meio, vemos ressecados também alguns de nossos sonhos.

O menino que dança

Ao recordar esse “eu menino”, surge outro: “Billy Elliot”. A clássica história de um garoto inglês ganhou versão no cinema e nos palcos. Ao descobrir na dança sua paixão e talento nato, Elliot enfrenta seu pai e seu irmão. O desafio dentro de casa retrata o entorno. Ou seja, o preconceito. Pra ele, um esforço redobrado: provar a si mesmo e aos outros a potência de sua vocação. Aliás, curioso como, raramente, um médico, advogado ou engenheiro precisa reafirmar sua escolha. Elliot é uma lição de obstinação e coragem movidas por muita sensibilidade.

E esse meu tour físico, continua. A água começa a esquentar no fogão. Sem me dar conta, aumento o volume da música. Do nada, giro na cozinha. “Você já fez isso décadas atrás”, diz meu corpo aliviado. Repito o gesto e sou levado para o “eu adolescente”. “Adocica, meu amor / Adocica…”. Beto Barbosa, Kaoma e companhia me fizeram ser o “Rei da Lambada” na minha rua. Assim como “A-Ha” e “Tears For Fears” me ensinaram a dançar a dois. Nas festinhas, sempre tinha aquela tensão pré-“música lenta”. Obviamente, ninguém queria a tal “vassoura” como companhia depois de investir tanto gel no cabelo.  

Cena do filme “Billy Elliot” / créditos: BBC Films, Tiger Aspect Pictures e WorkingTitle Films/ divulgação.

Corpo armado

A água ferve. Logo, a cozinha é tomada pelo cheiro do café. Os tapetes já estão espalhados. Ao servir a caneca, penso na razão dos homens terem seu corpo engessado à medida que crescem. Seria por conta da noção de virilidade? Mas a dança era usada no treinamento de soldados na Grécia Antiga. Como também era uma “arma” de galanteio nos salões da nobreza na Idade Média.

Sem contar os poderosos ritos dos povos originários e africanos, as danças seculares do Oriente e folclóricas de vários países. Aos poucos, me dou conta dos absurdos que reprimem nosso instrumento poderoso de expressividade. Introjetamos tanto sem ao menos questionar, não? Por exemplo, em 1987, na cidade de São Paulo. O então prefeito, Jânio Quadros, fechou o curso da Escola de Dança de SP e proibiu a entrada de homossexuais. Esse incabível fato ocorreu no país do samba, do forró e do funk.

Desligo a música. Já sentado, lembro de crescer cercado de diversos estímulos musicais. Minha mãe, com vinis do Milton Nascimento e música clássica. Por outro lado, o pé-de-valsa do meu pai ia de Luiz Gonzaga a Ray Connif. Na TV, assistíamos muitos homens em memoráveis performances. Sem dúvida, uma boa “Sessão da Tarde” sempre trazia Fred Astaire, Gene Kelly e Jerry Lewis em coreografias impressionantes. Era de “Dançando na Chuva” a “Curtindo a Vida Adoidado”.

Meus anos 90

Dos pais de todas as “boys bands, Menudos, ao requebrar de Patrick Swayze em “Dirty Dance” e John Travolta nos “Embalos de Sábado à Noite”. Ambos, padrões inquestionáveis de sensualidade e beleza masculina. Ícones do cinema que se reinventaram ao longo dos anos tendo a dança como habilidade infalível. Vai me dizer que você nunca imitou a já clássica cena de “Pulp Fiction”?  Sem contar as repetidas vezes que assistíamos “Footloose” e “Grease”. Ah, os meus anos 90. Quem diria que a dita “década perdida” iria render tantas memórias para além da devastadora inflação e a Era Collor.

Aperto o play novamente. Não posso deixar a pista da cozinha vazia! Dou um salto da cadeira e arrisco um movimento à “La Bamba”. Abruptamente, minha coluna me avisa que não tenho mais 18 anos. A hérnia me alerta da retificação lombar, o encurtamento no posterior da coxa e, sobretudo, da quarentena sem exercícios.

É difícil ter certeza das datas precisas dos acontecimentos. Quando nasceu a primeira espinha, o pelo debaixo do braço ou quando a voz começou a mudar. Entretanto, o corpo reconhece suas marcas. Ele sabe das coisas. Imagino que foi na implacável adolescência que o meu quadril começou a perder o rebolado. Paradoxalmente, a fase do despertar sexual e da castração dos afetos. “Mulheres fazem isso; homens aquilo desde que não se aproxime em nada com o feminino”, diziam.  

Cena do filme “Sonhos em Movimento” / créditos: Imovision/divulgação.

Corpo sacro

Mesmo com o rigor religioso, foi na Igreja que dei os primeiros passos no teatro, meu grupo amador. “Aulas de expressão corporal”. De certo, um pouco no molejo, a partir do apelo do Papa João Paulo II notando a migração dos jovens fiéis. Nesse meio termo, fui um dos primeiros jovens a dançar numa banda católica no Brasil. Afinal, não seria o corpo uma “obra de Deus”? “A estranha poesia do movimento, que acabou sendo expressa na dança sacra, capacitou o homem a organizar suas ações de esforço segundo uma ordem que, em última instância, é válida e compreensível ainda hoje. Somente o homem tornou-se consciente da existência dos deuses, quer dizer, o homem é o único ser vivo que tem consciência de suas ações e é responsável por elas”, já advertia o esloveno Rudolf Laban, maior teórico da dança do Século XX no seu livro “Domínio do Movimento”.

Nessa época, não entendia muito bem o estranhamento que isso causava. Atualmente, percebo o que estava por trás: para muitos, dança era permitido somente a um gênero. Com toda a certeza, não era o masculino. 

Trailer do filme “Pina” / créditos: Imovision/divulgação.

Aos mestres, com carinho

Com o corpo suado e o coração saindo pela boca, troco o café pela garrafa d’água. Novamente, meu esqueleto diz: “Vá para o plano baixo”. Automaticamente me deito no chão gelado da cozinha. Sinto nos ombros o tempo no qual escondia minha altura me curvando. Até que o direito ao movimento, novamente, me reencontra. Foi com a mestra de dança Dudude que meu peito abriu e os ombros alinharam. Enfim, uma fase de retomada do básico direito de expressar o que nos move. Redescobrir emoções guardadas. Sem julgamentos e críticas. Ao contrário, explorando posições em planos baixos, médios e altos num espaço de invenção. O contato com outros corpos livrando antigos receios “pode parecer que…”. “Você tem um corpo!”, lembro de ouvi-la me dizer. Um corpo não, inúmeros a cada dia.

Provavelmente, se até aqui, essas palavras não remexeram sua imaginação, aí vão três documentários preciosos. Em “Pina”, o premiado cineasta alemão Win Wenders aborda a vida e a carreira de uma das maiores influências da dança desde os anos 70, Pina Bausch. Também repleto de atuações incríveis coreografadas pela artista, o documentário “Sonhos em Movimento” mostra os bastidores da remontagem do espetáculo “Kontkthof”, poucos meses antes da morte de Pina. Dessa vez, o elenco é formado por adolescentes com idade de 14 a 18 anos. Daria tudo pra ter tido a chance de estar entre eles! Caso ainda não tenha se convencido: assista “Gaga – O Amor pela Dança”. O filme é uma verdadeira imersão na vida e obra do coreógrafo e diretor artístico da Companhia de Dança Batsheva, de Israel, Ohad Naharin. Certamente, cinema de primeira que pode resgatar muito do que move você.

Trailer do filme “Gaga – O Amor Pela Dança” / créditos: Vitrine Filmes/divulgação.

À sua maneira

Ao longo dos anos, sou apresentado aos grandes nomes do gesto mundial, entre eles notáveis homens: Nijinsky, Klaus Vianna, Kazuo Ohno, Merce Cunningham, Lennie Dale, Maurice Bejárt, William Forsythe, Antonio Gades, Akram Khan, Jérome Bel, além dos irmãos Paulo e Rodrigo Pederneiras, do Grupo Corpo. Aliás, tentei esclarecer o mistério sobre a origem do preconceito com homens na dança com o Paulo no episódio #3 do almasculina. Mesmo ele, depois de 45 anos de fundação do Corpo e tendo rodado meio mundo, não consegue achar um motivo pra isso. Em outras palavras, um tabu.

À essa altura, de banho tomado, já estou de gala pra entrar na dança. Nessa jornada sensorial, me perco em tantas lembranças e gestos. Homens livres ocupam o salão da minha memória. Estão lá, Baryshnikov em “O Sol da Meia-Noite” num pax de deux com Al Pacino no tango do “Perfume de Mulher”. Ao fundo, Omar Sy, do “Intocáveis”, e Joaquin Phoenix, do “Coringa”, duelando ao som de “Earth, Wind & Fire”. Anthony Quinn, de “Zorba, O Grego”, ensina o duo Leslie Cheung e Tony Leung Chiu-Wai, de “Felizes Juntos”, e o elenco de “Tango”, de Carlos Saura, sua dança popular grega, o sitarki.

No palco, um empolgado grupo de homens despidos, entre ingleses, americanos e brasileiros. Sem dúvida, são os ousados de “Ou Tudo Ou Nada”, “Dzi Croquettes” e “Magic Mike”. E o baile segue sem hora pra acabar… Todos mostram que não há um padrão determinado para a exteriorização e a força masculinas. E mais: provam que não há medo e preconceito maiores do que aquilo que move você. Então, descubra-se, à sua maneira.      

PS: Quais outros filmes passaram pela sua cabeça com homens dançando? Adoraria saber.

Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina .

Comments (2)
  1. Pingback: Culturadoria

  2. Pingback: Culturadoria

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *