por Paulo Azevedo, do podcast @almasculina
direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

A essa altura da história da humanidade, já deveríamos ter consciência de muitos fatos. Pelo menos, é o que esperamos a cada novo dia: “Que sejamos melhores, mais evoluídos”. Um deles, por exemplo, é que deveríamos saber que o tempo é uma convenção criada pelos antigos para “organizar” nossa relação com a natureza, da qual somos parte. Sendo assim, o passado, o presente e o futuro são nossas invenções. No entanto, ainda nos vemos agarrados ao passado, presos às nossas memórias. Por conta delas, justificamos inações ou ignoramos sua força sobre nós. E assim, elas criam marcas no nosso corpo, alteram o curso de nossa história.

Parecem como o ponteiro de um relógio nos lembrando a cada momento de certas situações. Como se assim fôssemos capazes de voltar no tempo e pedir um segundo a mais para pensar antes de ter dito isso, feito aquilo ou tomado tal decisão. Porém, essa é a outra verdade: o máximo que podemos fazer é aprender a lidar com as culpas e remorsos no agora. Afinal, somente o aprendizado nos é permitido carregar de nossos “eus” de “ontens”. Do contrário, podemos trazer na bagagem um excesso, não de experiências, mas de frustrações que tornam a caminhada pesada demais de suportar.

Os homens, em especial, condicionados ao famoso “Keep Walking”, seguem passos largos tomados por metas. Ser forte, bem-sucedido e viril são apenas algumas delas. Nisso, muitos se veem perdidos na rota criada por eles mesmos. Ou ainda, atropelam tudo e todos, focados na resolução de seus problemas.  Mas, todos nós, sem exceção, em algum momento da jornada, nos deparamos com um sinal na estrada: “Como você lida com o seu passado?”.

Cuidado na escavação

Nos últimos meses, algo chamou minha atenção. Para além de toda a tragédia das perdas e o caos político, ouvi muitas vezes que esse poderia ser um período de profunda revisão da humanidade. Uma chance de rever nossa história para pensar melhor o rumo que queremos. Senão para nós, para as próximas gerações. Particularmente, entre tristezas e angústias, esse momento tem sido de oportunidade.

Sempre fui inquieto, curioso, questionador. Lembro-me de uma vez, ter sido alertado: “Cuidado com os ossos que pode encontrar nas suas escavações; nem todo mundo pode querer ver o que você vai encontrar”. Mesmo assim, sigo na minha arqueologia pessoal. Já que não posso apagar os fatos da minha história, cada vez mais busco saber tudo que me formou. Na impossibilidade de remover, que tal fazermos upload constante uns dos outros? Conhecer quem somos hoje. E assim, entender que parte de quem sou, é feito da soma dos passados dos meus pais. Logo, somos frutos de nossos antepassados, que formaram cidades, estados, um país. Já pensou quantas gerações estão em nós?

Cena do filme ““Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”/ créditos: Focus Features/divulgação.

“Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”

Provavelmente, você já se perguntou o que teria feito anos, décadas atrás de tivesse a maturidade de hoje. Por outro lado, já quis “deletar” acontecimentos ou personagens da sua trama de lembranças. Eu já. Pois é esse mote de um dos meus filmes favoritos: “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (2004), 2º longa do cineasta francês Michel Gondry. Protagonizado por Jim Carrey e Kate Winslet, não foi à toa que o longa conquistou inúmeros prêmios, como o Oscar e BAFTA, em 2005, de Melhor Roteiro Original, e sua fantasia é cada vez mais palpável em tempos de inteligência artificial e biotecnologia.

Entre sonho e realidade, a trama acompanha Clementine, que decide apagar da memória Joel, seu ex namorado, após uma desilusão amorosa. No entanto, durante o processo, ela se arrepende e faz de tudo para se lembrar do ex-namorado após a intervenção médica. Enquanto isso, Joel descobre o ocorrido e busca o mesmo procedimento de excluir memórias para amenizar a dor. O mote veio de um experimento do artista francês Pierre Bismuth, coautor do roteiro. Nele, Bismuth mandaria para pessoas cartões dizendo que elas foram apagadas da memória de alguém que pensavam conhecer. Uma performance profética destes tempos da cultura do “cancelamento” e bloqueio nas redes sociais.

Trailer do filme ““Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”/ créditos: Focus Features/divulgação.

O impossível “garimpar”

À primeira vista, os protagonistas parecem ser de mundos completamente diferentes. Ela, uma garota de espírito livre e atraente. Ele, tímido, mais afeito a companhia dos livros. No entanto, ambos não querem abrir mão de suas memórias, mesmo as doloridas. Somente por meio da mistura das experiências, tidas como boas ou más, que eles formaram uma história comum. É impossível “garimpar” as lembranças. Assim como também é utópico querermos separar mente e corpo ou os efeitos de nossas ações no todo que rege o mundo, como escrito aqui na coluna.  

Aliás, desde que comecei o almasculina, as memórias são matéria-prima. Busco mais do que extrair das conversas com nossos convidados suas visões sobre as masculinidades. Mas também, resgatar as influências que formaram o jeito de cada um de estar no mundo. Por isso, senti a necessidade de também me colocar nessa trilha imersiva. Ano passado, refiz com meus pais uma viagem de 30 anos atrás até a fazenda do meu bisavô, no Piauí. Lá, deparamos somente com as reminiscências de nossa gênese familiar. Fui tomado por uma tristeza. Alicerces de uma casa e de um país sem memória.  

A Alma Imoral

Na oportunidade, gravei conversas com meus tios paternos e maternos para assimilar sobre as origens que formaram a minha masculinidade. Ainda espero compilar esse “escavar” nas gavetas familiares em um documentário. O fato é que todos têm muitas histórias para compartilhar. Sobretudo, como carregamos traços e comportamentos de nossos ancestrais. Inconscientemente, isso dói muito. Ao mesmo tempo, tomar consciência é libertador. Muito da relação do meu avô com meu pai, por exemplo, explica seu aprendizado afetivo com seus filhos. Ou mesmo, crescer em famílias com fortes raízes no patriarcalismo, me fez compreender o que tanto rejeito em mim de machismo, racismo e até homofobia.

É incompreensível como ainda hoje esse sistema social concede aos homens privilégios e autoridade sobre os demais. Porém, encontrei relatos de pessoas que romperam com imposições e tradições tão arraigadas. Agradaram a si mesmos para não se perderem contra a moral de uma cultura. Como provocou Nilton Bonder em “A Alma Imoral”: “Quantas pessoas poderíamos ter tirado ‘para dançar’ na vida e não o fizemos por ofertar sacrifícios ao nada? Sacrifício ao deus da timidez, ao deus da vergonha, ao deus do medo de ser rechaçado e assim por diante”. A publicação rendeu um documentário (dirigido por Silvio Tendler) e um premiado espetáculo homônimos (com Clarice Niskier, visto por mais de 450 mil pessoas desde 2006).

Livro “A Alma Imoral”, de Nilton Bonder. Créditos: Rocco Editora / divulgação.

Toparia esse desafio?

O preço pela transgressão é alto. Muitas vezes, pressupõe abrir mão do estabelecido e provocar nos outros o medo e o desconforto. Por outro lado, se alguns de nós não rompêssemos limites ainda estaríamos isolados em cavernas. “Deixar sua cultura e seu passado em nome de um futuro é saber recompor a tensão entre corpo e alma, aprendendo a romper por conta das demandas do futuro e não só pelas demandas do passado”, convida Bonder. Toparia esse desafio?

Ler esse livro em 2008 veio em boa hora. Naquele momento, me lembro de acertar boas contas com meu passado e livrar um bom peso das costas. Na época, foi claro perceber o quanto era preciso arriscar algo novo. Nisso, trouxe para São Paulo o que cabia no meu carro e comecei uma nova jornada. É impressionante como, ao olhar para trás, vejo o quanto foi necessário dar vazão a coragem. Somado a ela, resgatar a potência de recriar a vida, se colocar em movimento. Acima de tudo, se perdoar e agradecer pelo feito até ali, junto das pessoas que me formaram e com quem partilhei muitas conquistas.

A dança com o desconhecido

Reconheço que se colocar na estrada está no meu DNA. Décadas atrás, meus pais mudaram de cidade rumo ao desconhecido, em situações precárias. O futuro é um desejo do humano, ancestral. Essa é outra criação que uns lidam como fuga do agora. Outros, como elemento crucial para manter a esperança. O que importa é se dar conta que não há uma divisão precisa entre certas convenções que criamos para lidar com mistério que é o tempo. Ele não é feito dos minutos, das horas. Ao contrário, é composto da forma como cada um lida com seus vestígios. Ou melhor, como aceita seu ininterrupto chamado a “dançar” com o desconhecido.

E cada vez que o passado pesa nas costas, trago comigo as palavras de Nina, personagem do russo Anton Tchekhov na clássica “A Gaivota”: “O que é importante não é ter sucesso, nem nada do que eu sonhava. O que é importante é conseguir aguentar. Saber levar a cruz e ter fé. Eu tenho fé. E, assim, não me dói tanto. Quando penso na minha vocação, já não tenho medo da vida”.

PS: O presente é mesmo o que nos cabe. E vivê-lo bem. No momento em que escrevia esta coluna, perdia uma pessoa fundamental. Não só em importantes passos do Grupo Espanca!, coletivo teatral que fundei em 2004, junto com outros quatro artistas, quanto em vários outros momentos da minha carreira como artista. Lúcia Camargo: guardarei só boas memórias do seu carinho e incentivo sempre amoroso.

Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina .

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