por Paulo Azevedo, do podcast @almasculina
direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

fotos @vitorvieirafotografia

Vivemos um momento no qual nada está sob controle. Assim, cada novo dia é uma conquista. Estamos sendo desafiados a mirar no retrovisor da história pra descobrir como podemos nos reinventar como humanidade. Nada será como antes. Embora muitos se apegam ao conceito de “novo normal”. Por outro lado, nunca estivemos sob tamanho controle. Há milhares de anos, os rastros humanos eram encontrados, por exemplo, em fósseis. No entanto, com a era digital, nossas pegadas sobre a Terra serão a enorme quantidade de lixo eletrônico e dados na rede global. Desde o nosso primeiro login até a nossa última selfie, tudo estará armazenado na “nuvem”. Aliás, não foi à toa que palavras como stories, posts, leaks, hackers, fake news e tantos outros termos estão naturalizados no nosso cotidiano.

A dominação de povos gerou uma indústria bélica bilionária. Em seguida, o dinheiro se tornou o principal artifício de poder. Países mais ricos chegaram a comprar áreas imensas de outros em crise. No entanto, a munição mais moderna e perigosa é gerada por cada um de nós. Sim, são os nossos dados que movimentam um mercado de trilhões de dólares. Cada like, check-in ou compra online é um insumo valioso que pode interferir, por exemplo, nas eleições e no futuro da democracia no mundo. É assustador. Ao mesmo tempo, é ingênuo da nossa parte já que, raramente, lemos os termos e condições de uso de cada aplicativo instalado em nossos aparelhos. Nossos dados pessoais estão por aí sendo usados contra nós de um modo que desconhecemos. Provavelmente, a tela na qual você lê estas palavras traz uma câmera e um microfone, que registra tudo. Sendo assim, está tudo sob controle?

Quem não é visto, não é lembrado

Antes mesmo de chegarmos ao mundo, somos monitorados. Ultrassom, em 3D, revela o sexo da criança. Com isso, a projeção de um modo de ser, por meio do gênero, é estabelecida. Isso impõe uso de determinadas cores e brinquedos. “Meninos, sejam fortes!”; “Meninas, sejam belas, recatadas e do lar!”, ainda ouvimos isso em pleno 2020. Assim, sucessivamente, ficamos expostos ao olhar do outro. Na minha família, há de tudo: a “tia balança”, que afirma de cara “Engordou, né, meu filho?”; o “tio cartório”, responsável pelo status de relacionamento de quem está namorando, casado ou encalhado no clã. Ainda tem o “primo Censo”: “Tá mexendo com o que? Mas como você se sustenta?”. E por aí vai…   

Nessa exposição constante, o ser humano é o único animal que se coloca como presa diante de um coletivo. Embora seja antinatural. Pense bem: que outro bicho, em sã consciência, iria se expor ao inevitável julgamento e críticas, sendo que, o corpo emite todos os sinais da ameaça? Provavelmente, você já sentiu a garganta secar, a sudorese nas mãos e axilas, um tremor ao apresentar algo na escola ou no trabalho. Porém, vivemos numa era na qual parece impossível se esquivar do “quem não é visto, não é lembrado”. A partir disso, surgem inúmeros produtos pautados pelo nosso voyeurismo. Basta zapear pelos canais de TV. São inúmeros os realities shows para todos os tipos de gosto. De pessoas isoladas numa casa ou fazenda a chefs de cozinha, drag queens e ex-namorados na disputa por um prêmio mobilizando milhões de espectadores.

O preço dos “15 minutos de fama”

Quem diria que o filme “O Show Truman” (1998), de Peter Weir, seria um prenúncio assustador dos nossos tempos. O longa retrata a vida de um pacato vendedor de seguros (Jim Carrey) e sua esposa Meryl Burbank (Laura Linney). Mas, aos poucos, ele fica intrigado com a sucessão de fatos inusitados ao seu redor. Não é spoiler dizer que ele descobre que toda a sua vida foi monitorada por câmeras e transmitida em rede nacional. Ainda hoje, muitos podem achar isso surreal. No entanto, o personagem tornou-se até nome de uma epidemia do nosso século: a Síndrome de Truman, cunhada pelos irmãos americanos, o psiquiatra Joel Gold e o neurologista Ian Gold. Nela, os pacientes se imaginam personagens de uma grande encenação, na qual não tem qualquer controle e tudo se trata de manipulação de imagens.

Essa realidade está bem próxima de todos nós. Pense nos pais que monitoram seus filhos no quarto ou na escola por meio de câmeras. Ou ainda pessoas que não desgrudam do celular no trabalho, enquanto seu pet está sozinho em casa. Quando o matemático e cientista americano Woody Bledsoe criou o conceito de reconhecimento facial nos anos 60, não imaginaria desdobramentos tão diversos para sua invenção. Provavelmente, você já usou algum aplicativo que lhe retrata mais jovem, idoso ou mesmo com outro sexo, cabelo ou etnia. Pois é… Certamente, não chegou a ler as letras miúdas dos termos de uso. O mesmo ocorreu quando tirou e postou alguma selfie. Seu rosto pode estar servindo a um conjunto de dados de leitura facial e você nem sabe disso.

Cena do filme “O Show de Truman” (1998) / créditos: Paramount Pictures/divulgação.

Sorria! Você está sendo filmado

Atualmente, é possível ter câmeras instaladas nos computadores dos funcionários de uma empresa para monitorar a expressão e avaliar seu comprometimento com o trabalho. Os Estúdios Disney registram a reação de crianças durante uma exibição teste dos seus filmes de animação. Na China, esse artifício é usado para rastrear os uigures, uma minoria muçulmana acusada de uma campanha violenta pela independência na região. Recentemente, a mesma tecnologia foi usada para rastrear parte da população contaminada pela COVID-19. Pra quem já assistiu aos episódios da premiada série britânica “Black Mirror” (2011-19), sabe que as novidades tecnológicas não trazem só benefícios. É, justamente, isso que escancara o documentário “Privacidade Hackeada” (2019), dirigido e produzido por Karim Amer e Jehan Noujaim. O filme acompanha a ascensão e queda da empresa Cambridge Analytica.

Em 2018, ela foi acusada de envolvimento na manipulação de dados que favoreceram a eleição do presidente americano Donal Trump, o Brexit (saída da Grã-Bretanha da União Europeia), entre outros inúmeros casos.  Ao longo de 114 minutos, somos bombardeados com importantes reflexões como: “Quem já viu uma propaganda que te convenceu que o seu microfone está ouvindo suas conversas? Todas as suas interações, as transações do cartão, pesquisas da web, localizações, curtidas, tudo isso é coletado em tempo real numa indústria trilionária”. Portanto, a sensação é de estar assistindo a um filme de investigação na qual os criminosos (homens brancos, em sua maioria) continuam em suas ricas mansões. “A razão por que a Google e o Facebook são as empresas mais poderosas do mundo se deve aos dados terem superado o valor do petróleo. É o bem mais valioso da terra”, em uma das alarmantes citações do filme.

Trailer da série “Privacidade Hackeada” (2017) / créditos: Netflix/divulgação.

Gângster digital

Imagine que, nas eleições de 2016 nos Estados Unidos, cerca de 87 milhões de perfis no Facebook foram usados sem autorização ou conhecimento das pessoas, causando uma mudança psicológica de um país inteiro e alterando o regime democrático. Ou seja, cada eleitor estadunidense era mapeado por 5.000 pontos de medição. Com isso, o Facebook se tornou uma espécie de gângster digital numa operação psicológica. Sem contar o poder de fogo dos anúncios pagos. Enquanto Trump contabiliza 5,9 milhões de anúncios estrategicamente postados, a sua oponente, Hillary Clinton, tinha 66 mil. “Porque a personalidade influencia o comportamento. E o comportamento influencia como você vota”, dizia o material promocional de venda para inúmeros governantes da Cambridge Analytica. Até a Rússia esteve envolvida. Foi acusada de alcançar 126 milhões de americanos por meio da rede social.

Qual é a esperança de contarmos com eleições justas num futuro próximo? “Quando os algoritmos passarem a nos conhecer tão bem, governos autoritários poderiam obter o controle absoluto de seus cidadãos, ainda mais do que na Alemanha Nazista, e a resistência a esses regimes poderá ser totalmente impossível. Não só o regime saberá o que você sente – ele poderia fazer você sentir o que ele quiser. O ditador poderia não ser capaz de prover o cidadão de serviços de saúde ou igualdade, mas seria capaz de fazer com que ele o amasse e odiasse seus adversários. A democracia em seu formato atual não será capaz de sobreviver à fusão da biotecnologia com a tecnologia da informação. Ou a democracia se reinventa com sucesso numa forma radicalmente nova, ou os humanos acabarão vivendo em ‘ditaduras digitais”, alerta o historiador Yuval Noah Harari no livro “21 Lições Para o Século XXI”.

Capa do livro “21 Lições Para o Século XXI” / créditos: Companhia das Letras.

Dados psicólogos e analíticos

Algo soa familiar com o cenário político dos últimos anos no Brasil? Basta acompanhar o noticiário para entender mais sobre a PL das Fake News envolvendo políticos, servidores públicos e empresários. Sem contar o escândalo das denúncias de assédio do Governo Federal a servidores públicos por conta de posicionamentos políticos nas redes e as contas bloqueadas pela justiça por divulgação de informações falsas e incitar a desordem social e o ódio.

“As pessoas não admitem que propaganda influencia. Porque admitir significa confrontar nossas próprias suscetibilidades. A terrível falta de privacidade é uma dependência sem esperança nas plataformas de tecnologia arruinando nossas democracias em varias plataformas de ataque”, declara o professor David Carroll, um dos protagonistas do documentário, ao lado da jornalista finalista do Prêmio Pulitzer, junto com o The New York Times, pelo conjunto de reportagens sobre as ameaças à democracia, Carole Cadwalladr. Aliás, o TED Talks dela sobre o caso já conta com 4 milhões de visualizações.

Mas se você se considera um viciado no seu Smartphone, não assista. Não saberia dizer o que é mais alarmante: perceber o quanto alimentamos uma guerra cultural por meio do mapeamento de nossos dados ou não encontrar uma saída nessa malha tecnológica na qual o homem contemporâneo está entranhado. Ao que parece, ainda estamos bem longe de compreender a relação entre os direitos sobre os nossos dados e os direitos humanos.

Como única saída, nos cabe ter um posicionamento mais crítico diante de algo feito para nos conectar. No entanto, conhecemos os efeitos dessa estrutura pautada para nos instigar ao medo e o ódio. Faça um exercício: dê uma olhada no seu feed. Inconscientemente, assumimos polaridades alimentando uma divisão incapacitante. Por mais difícil que seja aceitar, nesse “Fla x Flu digital”, somos todos manipulados.

Uma outra mirada

Depois de tamanho choque de realidade, tomo um respiro em outras vias sobre o nosso tema. E encontro na nova série documental da Netflix, “A Era dos Dados”, apresentado por Latif Nasser, PhD em História da Ciência de Harvard, um alento. Logo no primeiro episódio, ele nos mostra importantes iniciativas que utilizam o monitoramento a serviço da biologia. Assim, Nasser concilia bom humor com informação revelando outras perspectivas quando ciência e tecnologia são aliadas para o bem-estar humano e do planeta.

É curioso como, ao longo desta coluna, pensei o quanto a arte é profética. Nesse sentido, nos tira o chão ao olhar além da superfície da nossa pretensa realidade. O interesse pela vida alheia, que chega a ser ingênua diante de tamanho controle que o Estado pode exercer, já rendeu ótimas histórias nas telas. Filmes como os clássicos “O Anjo Exterminador” (1962), do espanhol Luis Buñel; e “Janela Indiscreta” (1954), do mestre do suspense, Alfred Hitchcock; aos mais recentes “O Outro Lado da Rua” (2005), de Marcos Bernstein, num raro encontro entre Fernanda Montenegro e Raul Cortez; ou ainda o premiado “A Vida dos Outros” (2007), do alemão Florian Henckel von Donnersmarck, inclusive com o Oscar, BAFTA e o César de Melhor Filme Estrangeiro; são prova disso.

Esse último, é situado na Alemanha da Guerra Fria. Por isso, a polícia secreta alemã espiona os cidadãos considerados subversivos. Nisso, acompanhamos o agente Anton Grubitz vigiando 24 horas os passos do dramaturgo Georg Dreyman. Nesse contraste de realidades, percebemos as polaridades baseadas em preconceitos e intolerâncias. Numa era de tamanhas possibilidades e perspectivas possíveis, está, literalmente, em nossas mãos o poder de escolha.  E, portanto, como podemos formar nosso comportamento e moldar o incerto futuro para as próximas gerações. 

Cena do filme “A Vida Dos Outros” (2007) /créditos: Europa Filmes/divulgação.

PS: Se, por acaso, você está se perguntando o que tudo isso tem a ver com masculinidades, dê um Google e repare no perfil das pessoas que estão por trás de todo esse controle…

Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina .

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