por Paulo Azevedo, do podcast @almasculina
direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

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Existe um mito grego que reflete muito nossa jornada diária em qualquer fase da vida. Sísifo, o jovem filho de reis, era considerado o mais sagaz de todos os mortais. Também era reconhecido por sua malícia e felicidade. Assim, ele se sentia inabalável, ofendendo os deuses e enganando a morte. Como punição, deveria rolar uma grande pedra com as próprias mãos até o cume de uma montanha. Isso já seria um castigo suficiente. Mas não era bastante: toda vez que ele quase alcançava o topo, a pedra rolava até o ponto de partida. Dessa forma, Sísifo passaria seus dias até o fim dos tempos.

Portanto, pensar na força desse personagem, me remeteu aos desafios e impulsos na vida da juventude. Quando lembro que, a partir dos 14 anos, passava o dia todo fora de casa estudando, seguindo para ensaios do grupo amador de teatro, já canso só de pensar. Mais tarde, na faculdade, emendar estágios, ensaios em dois grupos teatrais, coral, banda, além de preparar cenas, estudar para as provas. Uma rotina que ia das 7h às 23h, com muitos compromissos nos fins de semana… Ufa! Imagino que Sísifo estava em algum lugar dentro de mim. Provavelmente, você também viveu suas sagas nesse período de tamanha transformação biológica e social. Nessa transição entre a infância e a fase adulta, a pressão da sociedade capitalista nos impõe uma rota precisa nessa montanha. Por exemplo, estudar longos anos para disputar uma vaga numa renomada faculdade, numa área respeitável, que possa permitir a você um plano de carreira e estabilidade até a aposentadoria (privada?).

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O topo da montanha

Em paralelo, conhecer alguém, namorar, noivar, casar e ter filhos. Em seguida, dar a prole as melhores oportunidades para seguir nessa mesma via. Afinal, dificilmente, as famílias se isentam de incrementar as cobranças por êxitos em tudo. Ou ainda, muitas não respeitam escolhas menos convencionais. E, assim, pedra morro acima e abaixo, chegamos ao fim da vida. Cansados, com saudades daquele tempo no qual sonhar o presente podia ser um poderoso imperativo para o futuro.

Ou seja, a energia transgressora era o motor para recriar o mundo. Ainda que utopicamente. Hoje, me alimento muito disso, para me desdobrar em muitas frentes. E quando o desânimo me pega pela cintura da calça, me questiono: Você ainda se lembra o que é ser jovem? Inúmeras leituras já foram feitas em torno desse mito. Uma delas, o livro “O Mito de Sísifo”, do escritor Albert Camus, explora essa história como uma metáfora potente sobre o homem em busca de sentido, unidade e clareza em um mundo desconexo, liderado por “entidades” sufocantes como as religiões e ideologias.

Qual leitura seria possível para jovens crescendo em um contexto de pandemia? Parte dessa difícil resposta, está no episódio #20 do podcast almasculina, comemorativo do 1º ano do projeto. Nele, três jovens, de diferentes realidades, compartilham suas vivências nesse contexto. Entre elas, a enorme angústia de ter seus sonhos de se formar e ter uma profissão revistos ou adiados. Ouvi-los nessa partilha me fez pensar na geração que enfrenta algo inédito em nossa história contemporânea, em escala mundial. Pude sentir a dor que é reconhecer a sua “pedra”, mas não enxergar o topo da montanha.

Capa do livro “O Mito de Sísifo” – créditos: Editora BestBolso/divulgação.

Começo ridículo

Qualquer tentativa de resposta imediata, é uma precipitação. Recorrer aos mais velhos, idem. Estamos todos diante de algo que sempre nos rondou, mas negávamos: a impermanência e a vulnerabilidade da vida. Já abordei aqui essa necessidade de segurança e controle e a importância de nos agregarmos para viabilizar mudanças. No entanto, por mais dura que sejam as circunstâncias, a nova geração tem a chance de lidar com o presente e o quanto nossos caminhos são passíveis de mudança. Não há muito o que cobrar deles agora, há? Talvez, nosso maior exercício esteja na elaboração das nossas perguntas mais íntimas.

“Todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos têm um começo ridículo. Muitas vezes as grandes obras nascem na esquina de uma rua ou na porta giratória de um restaurante. Absurdo assim. O mundo absurdo, mais do que outro, obtém sua nobreza desse nascimento miserável. Em certas situações, responder ‘nada’ a uma pergunta sobre a natureza de seus pensamentos pode ser uma finta de um homem. Os seres amados sabem bem disto. Mas se a resposta for sincera, se expressar aquele singular estado de alma em que o vazio se torna eloquente, em que se rompe a corrente dos gestos cotidianos, sem que o coração procure em vão o elo que lhe falta, ela é então um primeiro sinal”, aponta Camus.

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Pra começo de conversa

Assim como as masculinidades, jovens são múltiplos. Impossível encaixotá-los em uma mesma categoria. Muitos filmes retrataram que para cada contexto, existem desafios e questões muito específicas sobre o modo como cada pessoa lida com esse inseguro momento da vida. Certamente, os marcadores sociais podem ampliar ou reduzir as possibilidades. Sobretudo, gênero, raça e condição. Não há qualquer discussão sem levar isso em conta. Desconsiderar que um jovem negro é morto no Brasil a cada 23 minutos, segundo a ONU, seria, no mínimo, leviano. Um marco da retomada do cinema brasileiro, “Cidade de Deus” (2002), dirigido por Fernando Meirelles e Katia Lund, tornou-se básico para compreender o que se passa em muitas periferias do país.

Dispensa apresentações, sendo reconhecido internacionalmente, inclusive, com quatro indicações ao Oscar. No entanto, vale ressaltar como a saga do jovem carioca Buscapé nos faz refletir sobre como são determinantes as escolhas que fazemos desde cedo. Como prova disso, sugiro complementar a sessão com o documentário “Cidade de Deus – 10 Anos Depois” (2015), com direção de Cavi Borges e Luciano Vidigal. É curioso acompanhar o que aconteceu com parte do elenco e refletir sobre como lidamos com as oportunidades que cruzam nossas trilhas.

Para completar, ainda na cinematografia nacional, outro documentário: “Últimas Conversas” (2015), último filme de um dos maiores nomes do nosso cinema, Eduardo Coutinho. Nele, Coutinho entrevista estudantes do ensino médio da rede pública no Rio de Janeiro. Na verdade, por meio de perguntas simples, que deveríamos nos fazer diariamente, é criado um recorte sincero sobre a entrada na vida adulta. Emocionante, se reconhecer quando estava nessa faixa etária e ainda hoje, não ter respostas claras para questões, como: quais são as minhas expectativas e percepções sobre a vida? Quem sou eu?

Cartaz do filme “Cidade Deus – 10 Anos Depois” – créditos: Netflix/divulgação.

Sangue novo

Mencionei acima a segregação racial, mas não para por aí. Após décadas de movimento feminista, as jovens ainda precisam defender a equidade de gênero e exigir respeito sobre seus corpos. Enquanto, a perspectiva para jovens LGBTQIA+ ainda tem um longo caminho, pela conquista de existir socialmente e contar com direitos básicos, como acesso à saúde e trabalho. Além disso, no caso específico das pessoas transgêneros, aumentar a expectativa de vida que hoje, no Brasil, é de 35 anos.

Talvez seja esse o momento para abrir a escuta para o que eles têm a dizer, para que a sociedade possa reelaborar perguntas mais condizentes com um mundo menos predatório, mais colaborativo e viável para todos. Ao contrário da frase do dramaturgo Nelson Rodrigues, “jovens, envelheçam”, é preciso extrair desse “sangue novo” o que precisamos para oxigenar rígidas estruturas e conceitos opressores. Com “Os Sonhadores” (2003), de Bernardo Bertolucci, ampliamos os códigos de relacionamentos, a partir das experiências de três amigos em plena revolução estudantil. Aliás, esse longa cita um clássico: “Jules Et Jim – Uma Mulher Para Dois” (1962), de François Truffaut. Mesmo décadas depois, ainda temos muito o que aprender sobre as múltiplas possibilidades de amar, em liberdade.

Certamente, muitos outros filmes passaram pela sua cabeça ao longo dessas letras. De “Sociedade dos Poetas Mortos” (1990), de Peter Weir; a “The Edukators” (2003), de Hans Weingartner, neles, os jovens protagonistas nos provocam em muitos aspectos. No mínimo, você vai refletir sobre as críticas a juventude apática e despolitizada, além de resgatar o princípio de Carpe Diem. Diante disso, pode se dar conta de que aproveitar o presente pode ser bem mais do que carregar sua “pedra”.

Trailer do filme “Sociedade dos Poetas Mortos” – créditos: Touchstone Pictures/divulgação.

Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina .

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