por Paulo Azevedo, do podcast @almasculina
direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

direção de arte e foto @vitorvieirafotografia

Aprendemos na escola o coletivo de muitas espécies. Ainda hoje tenho a memória de quando ficava na garagem de casa, decorando todos os nomes. “Coletivo de lobo? Matilha”. “Coletivo de porco?” Esse eu sempre esquecia… “É… “. Até que minha irmã soprava: “vara”. “De abelha? Colmeia”. Enfim, o desafio era tentar associar tantos nomes complicados ao coletivo das espécies. Certamente, esse aprendizado não foi em vão. Desde pequenos, somos ensinados a viver em conjunto. Somos formados em sociedade. Sozinhos, estamos mais expostos à uma infinidade de situações que podem afetar nossa integridade física, emocional e psíquica. Como qualquer animal, somos seres gregários. “E o coletivo de ser humano?” Da mesma forma, me perdia nessa resposta. “Hoste, rancho, chusma, leva, roda, tribo, quadrilha, gentarada”.

É curioso como as palavras têm peso, não? Para um coletivo, tantas atribuições. Inclusive, escolha uma delas. Imediatamente, surgirão muitas imagens relacionadas. No entanto, nossa tribo se esquece, facilmente, que compartilhamos uma mesma casa. Constantemente, somos tomados pela ânsia predadora de nossos antepassados. Como um neandertal de terno e gravata ou tailleur, agimos na ilusão que nos torna competidores insaciáveis por posições, bens e poder. Em especial, os homens. Criamos uma mítica de que o mundo é para poucos. É preciso ser o mais forte, rico e heterossexualmente ativo.

Ao contrário dessa visão desgastada, a Terra é vasta. Assim como o capital e o alimento, suficiente para dar o sustento mínimo para todos os seus bilhões de habitantes. Se cuidamos dela, nos dá em retorno. É o ciclo da vida. Porém, nessa insana corrida, sem fim, nos esquecemos de olhar ao redor. Racione comigo: desde que nasceu, você fez algo ou teve alguma conquista que não envolveu outras pessoas? A partir disso, fica claro um ponto central da nossa crise atual: qual é a força do coletivo?

Utopia e realidade

Eu sou fruto do coletivo. A escola não foi um dos lugares mais generosos que encontrei para minha iniciação social. Por outro lado, a convivência na minha rua me trouxe um aprendizado pra vida toda: a empatia. Sendo assim, aprender o olhar do outro, reconhecer as diferenças. Talvez, o mais difícil, respeitar visões contrárias à minha. Essa fase de iniciação é fundamental na formação, em especial dos meninos. “A frase relevante é a aceita na Nova Guiné por homens e mulheres de cerca de 80 tribos: ‘Um menino não pode transformar-se num homem sem a intervenção ativa dos mais velhos’. Uma menina torna-se mulher sozinha, com a evolução corporal que marca essa mudança; as velhas lhe contam histórias, cantam e celebram. Mas no caso dos meninos, sem velhos não há mudança”, comenta Robert Bly, no seu livro “João de Ferro – Um Livro Sobre Homens”.

Aliás, foi lá no meu bairro de nascença, entre os mais velhos e pessoas da minha idade, que encontrei o teatro. Essa arte que pressupõe o coletivo foi a que mais me educou para a vida. Inclusive, sua natureza possibilita realizações impensáveis. Ao mesmo tempo, potencializa individualidades e nos dá uma noção concreta dos limites. Assim, um artista vive entre a visão poderosa do Panteão, quase próximos dos deuses, tendo os pés fincados na terra, em sua humanidade. Utopia e realidade compondo cada instante.

Tribus Brasilis

As artes cênicas me deram um instrumental para transitar por cenários e situações tão distintas. Mesmo que o objeto do meu trabalho não fosse, necessariamente artístico, a escuta, o lidar com os conflitos, posicionar-se diante do inesperado, planejar as finanças (mesmo ínfimas!) para viabilizar os projetos etc. Além disso tudo, a busca permanente em tomar consciência de limitações, preconceitos, medos, enfim, pontos para aprendizado e amadurecimento. Ao contrário de muitas profissões, os operários desse ofício não possuem um plano de carreira e a corda bamba é a única trilha certa.

Sinto que hoje a crise mundial, em especial no nosso país, tem muito a ver com a escassez de muitas das características positivas mencionadas acima. Nos acostumamos a apontar uma certa quadrilha como os únicos responsáveis por todos os nossos males. No entanto, nos esquecemos que eles não surgiram de um “ovo de galinha”, mas sim, do nosso meio. Estamos num ano eleitoral. A pandemia escancarou a desigualdade e a inapetência dos líderes que escolhemos. Afinal, mesmo em um coletivo, é preciso ter papéis, funções, articulações internas que potencializem o diverso para benefício do todo.

Se nós não nos sentimos representados pelos atuais governantes no sistema que rege a nossa tribus brasilis, o que podemos fazer? Confesso, estar, assim como muitos de nós, sem esperança diante da velocidade do desmonte de conquistas galgadas às duras penas durante longos anos. Assistimos aqueles que deveriam pensar no bem comum atuar em causas próprias ou grupos privilegiados. Destruir equivale a um milésimo do tempo que levou para construir algo. É um fato comprovado. Por outro lado, quando volto meu olhar para a história, reconheço microrrevoluções que possibilitaram benefícios para muitos.

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Coragem e vulnerabilidade

Aqui mesmo na coluna, já citei inúmeras dicas destacando personagens que agregaram parceiros em sua jornada gerando legados incontestáveis. Quando algumas mulheres não se conformaram com as restrições e desigualdades de direitos, em diferentes épocas, não imaginavam o quanto isso reverberaria no nosso cotidiano. São muitos os exemplos animadores de coragem e luta. Atos como da mulher negra que se recusa a levantar de um assento no ônibus destinado às pessoas brancas ou do pastor e ativista político que expõe o injustificável racismo estrutural. Assim, como quando transexuais, lésbicas e homossexuais indignados apedrejam um bar contra o preconceito e iniciam um movimento pelos direitos LGBTQIA+.

Ou ainda, quando um grupo de homens artistas pintam a cara, praticamente nus, em performances que rompiam todas convenções de masculinidade, em plena ditadura no Brasil ou músicos que fazem da música um ato revolucionário, tornando-se uma influência inegável para a cultura brasileira. Tenho acompanhado o reinventar dos artistas nesse período de pandemia. Mesmo abatidos, em poucos meses, muitas trupes se reinventaram para ocupar esse palco provisório e virtual. Assim, junto ao passar o breu na sapatilha, aquecer o corpo, a voz e os instrumentos, mapear os roteiros e scripts, estão se desdobrando para domar aparatos tecnológicos.

Grupos referenciais na cena brasileira e mundial, com décadas de experiência domando a internet e explorando seus recursos para manter viva sua trajetória de 38, 45 anos de estrada. Coisa linda de ver! Se temos um objetivo comum, reunir potencialidades e limitações, é a melhor via para começar algo. Foi assim nas peças que atuei, dirigi ou escrevi, vieram gerações e gerações que acumularam uma bagagem de conhecimento sobre a vida e o ofício, me permitindo acessar tantos atalhos!

Percebe a diferença?

O almasculina é mais um importante fruto dessas parcerias. Dessa forma, segue contando com a contribuição de cada ouvinte, leitor e de todos que nos acompanham nas redes. Um coletivo que só aumenta para gerar reflexões e educar para encontros mais viáveis para todo mundo. Posso parecer utópico, enumerando alguns exemplos de pessoas inconformadas com as restrições do seu tempo. Mesmo assim, geraram movimentos para ações amplas e atemporais. Enquanto escrevia, me vieram à mente muito outros.

E repito: sou fruto do coletivo. Não realizaria nem um terço do que conquistei na vida se não fosse em chusma. Mesmo nas empresas nas quais prestei consultoria nos últimos 12 anos, eu me colocava junto deles, como um parceiro. A primeira coisa, era tirar o crachá e falar de gente pra gente, não de função pra função. Percebe a diferença? Nessa pandemia, eu mesmo tomei coragem para tirar antigos projetos da gaveta. E, graças a parceiros, tão talentosos como corajosos e amáveis, estão tomando forma em tempo recorde, mesmo sem recursos ou patrocínios. Essa tem sido nossa ação política para transformação do mundo. A gente se olha e se reconhece como uma roda.

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“Somos” que potencializa o “eu”

Portanto, buscamos criar um bem simbólico que transforme o entorno por meio de um discurso poético. Atos cotidianos de coragem, amabilidade e vulnerabilidade, enquanto nos mobilizamos para manter nosso ofício, espaços de liberdade. Enfim, é inegável que a cultura é um patrimônio de qualquer nação respeitável do mundo. Admiramos muito a cultura estrangeira, presente na forma como as sociedades se organizam no espaço público. Por trás disso, está o aprendizado, o conhecimento e prática de tudo isso. E isso não deveria ser uma luta exclusiva de uma classe. Na verdade, lá fora está cheio de boas causas nos esperando. Igualmente, são inúmeros financiamentos coletivos, para todos os tipos e gostos, nas quais você pode fazer sua parte, a partir de poucos reais.

Reconhecer seus privilégios diante de uma realidade tão desigual é um primeiro passo. Está sem dinheiro? Doe parte do seu tempo. Ele é um recurso precioso de mudança social. Tenho certeza que vai encontrar muitos e bons pares para a causa que move você. Ao invés de reclamar do que lhe parece tão alheio e distante, qual “camisa” você pode vestir agora? Junto a tudo isso, outra medida essencial: se cuidar, se conhecer, aprofundar nesse amplo território que somos, e explorar nossas topografias abissais. Somos mais do que competidores famintos pelo pódio. “Somos” pode ser ainda melhor se o “eu” entender que é melhor no “somos”. Arrisque-se nessa jornada. Sempre de mãos dadas.  

PS:

Hoje as dicas da coluna estão subliminares, como uma palavra cruzada. Mencionei alguns fatos, personagens e coletivos que marcaram a nossa história. Existem documentários disponíveis nas redes para que possa se imbuir do espírito coletivo que aguarda você. Depois visite nosso perfil no instagram (@almasculina) e vai encontrar as imagens por lá.

A coluna de hoje é dedicada a todos meus parceiros e parceiras. Em especial, à Carolina Braga, idealizadora do Culturadoria. Amiga que está ao meu lado há décadas, auxiliando sempre que pode em muitos dos meus projetos. E também dedico à Dudude, mestra e artista da dança, já citada aqui na coluna. Ambas, fizeram aniversário no último dia 1º de outubro. Amo vocês!

Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina .

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