por Paulo Azevedo, do podcast @almasculina
direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

Provavelmente, quando pensa em “cabeça”, a primeira imagem que surge é a do cérebro. Uma das áreas mais complexas e misteriosas do nosso corpo. São 86 bilhões de neurônios possibilitando até  100 trilhões de conexões. Ou seja, uma rede capaz de criar inúmeras narrativas. Os cientistas afirmam que passamos cerca de 4 horas do dia “alimentando” artificialidades. São preconceitos, mentiras, coisas que, de fato, fabulamos. Quanta energia desperdiçada em ilusões, não?

É uma pena que a nossa cultura ocidental criou a separação “corpo e mente”. A cabeça sempre esteve lá, no topo do corpo, nosso farol! Infelizmente, alguns homens ainda hoje se orientam por outra arcaica segmentação: pensar com a “cabeça de baixo”. Nessa lógica, o corpo masculino teria três “compartimentos” para justificar seus pensamentos, ações etc. Ah, essa desculpa essencialista patriarcal… “Parece que tem merda na cabeça”. Não seria essa a expressão popular quando alguém faz algo errado?

Invariavelmente, qualquer máquina precisa de energia pra funcionar. A nossa não seria diferente. Pra sustentá-la comemos, dormimos, alguns fazem atividades físicas, meditam, rezam, buscam conhecimento e outra infinidade de estímulos. Tudo que “jogamos” pra dentro, pelos sentidos, gera aquilo que somos. Sendo assim, o que você consome?

Além dos muros da escola

Na escola, aprendi pouquíssimo sobre o meu “funcionamento interno”. Era um aluno mediano, mas muito ativo. As aulas de ciências e biologia não me ajudavam a lidar com o tal despertar da sexualidade. Apesar de sermos parte da natureza, porque nos colocamos acima dos bichos e plantas? História, O.S.P.B. (Organização Social e Política do Brasil – Sim, sou dessa época!) e geografia não deram o meu real contexto no mundo. Matemática e física não apontavam pra uma equação fundamental: quem sou eu? Não estou invalidando o sistema educacional. Pelo contrário, cresci com a noção da extrema importância da pedagogia. Com três professoras dentro de casa seria inevitável. “Tudo te serve pra alguma coisa na vida”, minha mãe dizia.

O tempo passou. E compreendi que o ensino dá um rumo. A partir daí, cada um que siga seu caminho. Dessa forma, escolhi aprofundar naquilo que me dizia respeito. Escolhendo as ferramentas pra lidar com o meio. Fortalecendo a consciência. E assim, aprendi a selecionar meu insumo. E quantas opções temos disponíveis hoje, não?

A tal “cabeça de baixo”

Sempre fui um “estranho no ninho”, alheio aos rótulos e “ismos”. Nunca coube no que era esperado do ser “menino”. Era do esporte, mas não do futebol. Era da “galera”, mas de teatro. A inadequação deu espaço à liberdade. Talvez como defesa ou necessidade de fazer meu caminho, desenvolvi uma curiosidade imensa. Busquei suprir tudo aquilo que não encontrei na sala de aula. Pequenas lacunas que nem a escola, o curso técnico ou a faculdade supriram. O teatro foi um desses lugares que me abriu a moleira.

Continuamente, a vida nos traz situações. Ou melhor, nos deparamos o tempo inteiro com “bifurcações”, como diz o budismo. Sexo e sexualidade, por exemplo. Sempre uma questão em aberto. Quais foram as suas fontes? Geralmente, os meninos descobrem na pornografia seu principal tutor. É teoria antes da prática fácil, gratuita e rápida. Por volta dos 9 anos de idade, são iniciados na cultura falocêntrica (phalos = pênis). Em resumo, é uma convicção baseada na ideia da superioridade masculina. Ser “macho” como valor fundamental e superior a tudo e todos. Inegavelmente, esse é um dos fatores para serem eles os maiores agentes de violência (em especial, contra mulheres e outras minorias). Nem vou mencionar sobre autocuidado! Sabia que são amputados no Brasil cerca de mil pênis todos os anos por falta de higiene? Cuidem-se… É básico!

A propósito, 22 milhões de brasileiros consomem pornografia, sendo 76% homens. Eu fui um desses. Sem moralismos, o problema é o que está por trás. Em geral, está lá a erotização da violência, a inevitável comparação com corpos de estética muito limitada, a falta de consentimento, sensualidade e erotismo e, por aí vai. Sem contar que o Brasil é o recordista mundial de consumo de pornografia trans. Por outro lado, um dos maiores países cristãos do mundo está entre os que mais mata travestis e transexuais. Como lidar com esse violento paradoxo? Outra vez, as tais escolha e consciência.

Os “fantasmas”

Portanto, sabemos que o que a “cabeça de cima” absorve afeta a “de baixo”. Sendo que no meio desse percurso está o coração. Muitas vezes, blindado ou esquecido. Nisso, muitos homens levam tempo pra perceber que não é o “membro” nosso guia mestre. A potência de vida não pode ser pautada pelo seu tamanho médio. O homem não pode ser resumido ao que cabe na cueca!

Sendo você um homem hétero, homo ou trans em algum momento da adolescência passou por algum constrangimento. Por exemplo, no vestiário da escola. A ingrata comparação entre as etapas do crescimento de cada colega de classe. Quem já tem pelos, pomo de adão, músculos e o maior “pinto”. Mais tarde, na cama, sentiu alguma cobrança pela alta performance. E a pressão social só aumenta. Inclusive, por parte de algumas mulheres que reproduzem gestos patriarcais. “Homens não choram, nem falham”, muitos acreditam. Quem inventou essa ideologia massacrante?

Criado numa família católica tradicional, só mais tarde encontrei fontes pra desfazer tantos “fantasmas”. Lembra das quatro horas por dia que perdemos em elucubrações? Sem dúvida, boa parte delas gastamos com incertezas e angústias sobre a própria sexualidade e afetividade. Nesse caso, muitos ainda se apoiam e buscam reafirmar sua identidade guiados pela masculinidade hegemônica. E como isso afeta todos os nossos relacionamentos!

Universo inexplorado

Por conta do almasculina, ano passado, conheci o podcast e livro “Sexoterapia”, da psicóloga e sexóloga Ana Canosa. Ela é a convidada desta temporada do nosso podcast no quadro “Lugares Comuns”. Na publicação, Canosa traz 15 crônicas com casos clínicos envolvendo queixas sexuais. Muitas questões básicas que perpetuam na fase adulta estão lá. Da identidade e orientação sexual às fantasias ou disfunções sexuais. Esses temas também estão no podcast da Universa UOL. Em parceria com a jornalista Marina Bessa, elas desmitificam muitos tabus. Vai me dizer que, mesmo os mais esclarecidos, não têm os seus?

Portanto, é fato compreender que “anormal” é restringir a libido somente à genitália. Somos um todo! Independente da sua orientação sexual, pense nas áreas do seu corpo que você nunca tocou. Zonas erógenas ainda inexploradas. Se olhe um pouco no espelho. Sem críticas ou julgamentos. Sozinho, à dois, três… Somos um universo. Pra ser nutrido ampliando nossas experiências plurais e únicas.

Capa do livro “Sexoterapia – Desejos, Conflitos, Novos Caminhos em Histórias Reais” e
do podcast “Sexoterapia”, da Universa / créditos: Editora Master Pop/ UOL/divulgação.

Para tirar o atraso

Inclusive sobre aprendizados, sinto uma inveja danada dos adolescentes de hoje. Muitos dos meus amigos também. Na minha época, o máximo era acompanhar a incrível série da TV Cultura, “Confissões de Adolescente”. Hoje, basta zapear os catálogos dos streamings com produções de alta qualidade abordando o tema. De documentários a séries científicas ou ficcionais. Sex Education é uma delas. As duas temporadas da série britânica da Netflix trazem uma lição a cada episódio. Logo no primeiro episódio, deparamos com um jovem oprimido por ter um membro acima da média. O que seria um “bônus” validado socialmente, torna-se uma armadura pesada demais de carregar. Em outras palavras, as situações são de fácil identificação, com conteúdo, humor, ótimos elenco e trilha sonora. As cenas revelam impotências e medos, mas também trazem exortações sobre diversidade, vulnerabilidade e afetividade. Tudo que nossos pais não foram instruídos para nos contar.

Trailer da 2a temporada da série “Sex Education” / créditos: Netflix/divulgação.

A outra é a série “Explicando…O Sexo”. São cinco episódios de curta duração. Aborda de fantasias sexuais a fertilidade e parto, sempre sobre a perspectiva da ciência e da psicologia. Até onde conseguiram chegar. Enfim, esses são apenas alguns dos “pratos” que abriram meu apetite pra descontruir paradigmas. Por isso, vou tentando ocupar as minhas trilhões de conexões com menos cismas e prejulgamentos. Me tornando uno e múltiplo, sem divisões. Um longo caminho pela frente. Mas, certamente, selecionando opções mais interessantes do menu que o mundo oferece. Pra tirar o atraso e satisfazer sem abusos ou indigestão.

Pôster da série “Explicando…O Sexo” / créditos: Netflix/divulgação.

PS: Compartilhe o que tem te alimentado nestes tempos de pandemia. Como lida com seus tabus e “fantasmas”? Vamos ampliando nosso cardápio juntos, que tal?

Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina .

Comments (2)
  1. Que texto bom! Acho que gasto mais tempo com nas elocubrações Hahahaha. Hoje as coisas são bem diferentes mesmo, não sei se mais fáceis. Vejo minha filha e seus amigos, todos adolescentes, com suas dificuldades em relação à sexualidade. A informação tem ajudado muito, dado maior liberdade de escolha e posicionamento. Mas a fase é sempre difícil, uma fase de luto e de luta, descoberta e incertezas. Hoje sinto que eles têm mais apoio, são mais livres e libertos de tantos tabus. Fiz um poema para a adolescência de minha filha, chama-se “O Paradigma das Caixas”. Tá meu livro. A grande questão hoje penso ser as “caixas” ou os “caixões”, pois, “Há sempre uma caixa à espera de alguém que não se encaixa”. Liberdade por um mundo melhor! Parabéns pelo texto e pelo trabalho.

  2. Pingback: Culturadoria

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