por Paulo Azevedo, do podcast @almasculina
direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

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Fomos educados numa cultura na qual tudo é compartimentado. Ou seja, desde pequenos, somos pautados por uma lógica ocidental. Assim, agimos como se as coisas não fossem estreitamente ligadas. Com o sexo não seria diferente. Dessa forma, naturalizamos que o corpo é separado da mente; que sexualidade nada tem a ver com a formação da nossa identidade; que os valores são distintos de posicionamentos e escolhas políticas. Vale ressaltar que política aqui é compreendida como todas as nossas ações em sociedade. Por isso, vista muito além do complexo jogo eleitoral partidário, dever cívico dos brasileiros a cada dois anos.

No entanto, basta uma breve visita pela história recente da humanidade para perceber o quanto a política está diretamente ligada ao sexo. Normalmente, só pensamos nesse forte vínculo quando nos deparamos com assuntos mais polêmicos: aborto, criminalização da homofobia ou casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Muitas vezes, caímos numa leitura simplista, respondendo apenas “sim” ou “não”, sem aprofundar nessas questões. Pare e pense por um momento. Inconscientemente, assim como eu, talvez você tenha herdado hábitos e atitudes que reforcem preconceitos e padrões familiares. Imagine o quanto da relação com seu corpo, sua sexualidade e seus relacionamentos estão impregnados disso. Então, o primeiro passo nessa questão seria refletir: sexo tem a ver com política?

Ganância, corrupção e luxúria

Em uma rápida busca pelos catálogos de streamings, é possível encontrar um acervo eclético de documentários, séries e filmes que abordam os domínios da política sobre a sexualidade. Dentre as séries ficcionais, disponíveis na Netflix, estão a já clássica House Of Cards (2013), que trata da controversa trajetória do congressista Francis Underwood e sua mulher, Claire, ao abrirem mão de qualquer coisa pelo mais alto posto do poder americano; a mais recente The Politician (2019), na qual o protagonista poderia ser considerado uma versão mais light e juvenil de Francis Underwood. Em ambos, os bastidores da política são expostos com fortes doses de ganância, corrupção e luxúria. Mesmo fora da ficção americana, em um mundo pra lá de globalizado, é curioso notar como a colonização europeia ocidental deixou muitas marcas históricas que instauraram uma moral sexual comum. Ainda que tenham traços culturais e práticas sexuais distintos, possuem atributos comuns.

Infelizmente, o fortalecimento da desigualdade de gênero e do patriarcado e a influência das religiões nas decisões do Estado em prol de um único modelo familiar são alguns deles. Prova disso, é o cenário revelado na única temporada da série documental “Amor e Sexo Pelo Mundo”, disponível na Netflix. Em apenas seis episódios, a jornalista Christiane Amanpour, da CNN, investiga temas envolvendo romance e sexo. A larga experiência na cobertura de conflitos e guerra, deu a Amanpour uma fluência impressionante para lidar com esse tema ainda tabu. Durante as conversas com pesquisadores e cidadãos comuns, ela não esconde o deslumbramento diante de inusitadas descobertas.

Trailer da série “The Politician”(2019) – Créditos: Netflix/divulgação.

Faça amor, não faça guerra

Por exemplo, no Japão, documentos históricos que revelam a forte interferência da cultura vitoriana, a partir do Século XVII, sobre a intimidade sexual dos japoneses. A partir desse fato, livros que traziam pinturas de pessoas transando foram censuradas. O prazer cedeu espaço a culpa religiosa-cristã. O mesmo ocorreu no Líbano com o manual sexual “O Jardim Perfumado”, escrito entre 1410 e 1434, na qual Maomé, pênis e vagina ocupam a mesma página, além de ser um livro que tinha a igualdade entre gêneros como princípio. Imaginem quantas guerras civis naquele país não teriam acontecido com menos repressão e mais afetos entre seus cidadãos?

Da mesma forma, é surpreendente descobrir o peso das castas nas relações e nas expressões públicas de afeto em Deli, na Índia. O paradoxo entre o sagrado e o profano, entre o permitido e o proibido, é concreto na vida das Hijras. Ainda que sejam o “terceiro gênero” e consideradas sagradas pelas escrituras milenares hindus, essa comunidade transexual e travesti ainda sofre com a discriminação social, mesmo protegidas por lei. E o tour sexual dessa série não para por aí: inclui ainda Berlim, Acra e Xangai. Vale cada milha da viagem.

Em resumo, religião, sexo e política precisam ser constantemente discutidos e ter a relação sempre questionada. Mesmo nos países ditos laicos, tanto Alemanha, como o Brasil. Em comum, nesses países, as mulheres ainda sofrem opressões e muitas restrições sociais. Mesmo sendo as responsáveis por revoluções que geraram transformações palpáveis na sociedade, hoje é notável o avanço do conservadorismo. Infelizmente, essa luta milenar contra as formas de controle sobre o corpo da mulher pelo Estado está longe de acabar.

Cartaz da série “Christiane Amanpour: Amor e Sexo pelo Mundo” (2018) – Créditos: Netflix/divulgação.

Impregnados pelo Século XIX

“As consequências desses grandes paroxismos morais do século XIX persistem entre nós. Eles deixaram uma forte marca nas atitudes relacionadas ao sexo, na prática médica, na educação de crianças, nas angústias parentais, na conduta policial e na legislação sobre o sexo (…) A ideia de que o sexo per se é prejudicial aos jovens está inculcada em estruturas sociais e legais cujo objetivo é mantê-los afastados do conhecimento e da experiência do sexo. Muito da legislação ainda vigente a respeito do sexo também data das cruzadas moralistas do Século XIX”, contextualiza Gayle Rubin no livro “Políticas do Sexo”.

Nessa publicação fundamental para entender o debate contemporâneo sobre gênero e sexualidade, Rubin problematiza as categorias classificatórias e expõe algumas formas regulatórias da sexualidade, como o direito e a medicina. É daqueles livros que deveriam ser obrigatórios na grade curricular do ensino médio. No Brasil então, nem se fala. Os recentes imbróglios envolvendo o perdão das dívidas de mais de R$1 bilhão das igrejas e o fanatismo religioso em torno do caso da menina de 10 anos vítima de estupro no Espírito Santo, são apenas sintomas do rumo do país em relação ao assunto.

Sei que é amplo e complexo. No entanto, não é possível ignorar o agente comum por trás de tamanha tentativa de cerceamento e controle: os homens. Em especial, a parcela branca, heterossexual e cisgênero. Sobretudo para você que já acompanha a coluna, pode parecer que estou “chovendo no molhado” e que não há uma saída para algo instituído historicamente ao longo dos séculos. Porém, cada vez mais percebo o quanto a consciência é a saída.

Capa do livro “Políticas do Sexo”, de Gayle Rubin – Ubu Editora /divulgação.

Futuro x Memória

É preciso compreender a institucionalização histórica do racismo no Brasil e a invalidação dos direitos povos originários. Quando o país validou a eugenia no final do século XIX, legalizando o “embraquecimento” da população por meio da ciência, criou um dos mais vergonhosos aspectos da nossa história política. O reflexo pode ser visto ainda hoje na nossa música, na mídia e nas relações de trabalho: naturalizamos a objetificação e a hipersexualização de homens e mulheres negras. Se esse assunto parece novidade para você, lhe convido a ouvir o episódio #6 do almasculina com o comunicador e palestrante AD Junior, já mencionado na coluna #4 aqui do blog. Em relação aos povos originários, a doutrinação sobre os corpos, o massacre e desapropriação de suas reservas persiste da chegada dos portugueses até hoje.

Afinal, como acreditamos ser “o país do futuro” sendo “o país sem memória”? O distanciamento necessário para compreensão dos fatos muitas vezes se perde em meio a nossa urgência cotidiana. A sensação de empobrecimento da nossa população em todos os aspectos serve a um objetivo perverso e claro: a dominação e perpetuação dos que se mantém no poder. Não encontro outra explicação. A não ser a crença no movimento pendular da história no qual todo avanço, sempre provoca um recuo em seguida.

direção de arte e fotos @vitorvieirafotografia

Apego ao tempo

É o que mostra o alardeado documentário brasileiro “Democracia em Vertigem”, dirigido pela mineira Petra Costa. Indicado ao Oscar deste ano, o filme expõe uma visão pessoal da diretora resgatando fatos marcantes da nossa recente história política. Nele, duas coisas são improváveis: não se afetar pela força das imagens; e não se questionar se o processo de impeachment da ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff, teria sido conduzido da mesma forma caso fosse um homem na mesma posição. A votação para a queda de Dilma foi considerada como um dos reflexos da polarização política e da ascensão da extrema-direita ao poder. Essa mesma extrema direita que se omite diante da violência contra mulheres, negros e a população LGBTQIA+, enquanto prega valores em prol da família e contra a corrupção e a “velha política”. Me desculpe se pareço duro demais. Infelizmente, o noticiário tem reafirmado esses fatos.

Mas prometo terminar dando ao menos uma dica que traz um alento sobre como a obstinação de uma pessoa pode causar transformações em grandes escalas. Baseado em fatos reais, o filme “Suprema” (On The Basis of Sex”, em português, “Com Base no Sexo”), da cineasta Mimi Leder, retrata a vida da advogada Ruth Bader Ginsburg, formada em Harvard e Columbia. Apesar de ser recusada pelos principais escritórios de advocacia, ela enfrentou o machismo nos anos 50 e 60. Por conta disso, como professora, ela se especializou em direito relacionado ao gênero. A partir daí, apontou falhas na constituição americana e abriu caminhos para a igualdade de gênero no país. Esse sim é um conceito que deveríamos naturalizar quando o assunto é política: sexo deve ser um espaço aberto para descobrir nossas potências como parte fundamental de uma sociedade saudável para todos.  

Trailer do filme “Democracia em Vertigem” (2019) – Créditos: Netflix/divulgação.

PS: Lembrou do meu convite bem no início da coluna?

Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina .

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